Donju, os capitalistas que libertarão a Coreia do Norte

Instagram
Compartilhar no Whatsapp


Em 2018 quando cheguei na estação de trem de Pyongyang, capital da Coreia do Norte, já fui surpreendido com uma primeira imagem: a quantidade de carros de luxo como Mercedes e BMW transitando pelas ruas sinalizavam que algo diferente estava acontecendo no último reduto comunista do mundo.

Estação de Trem de Pyongyang – Coréia do Norte (Foto: Arquivo Pessoal)

Ao longo da minha viagem à RPDC foi ficando cada vez mais evidente que existia uma elite no país que não se limitava aos altos membros do partido. Uma elite que usa Gucci e Dolce & Gabbana, uma elite que ostenta Rolex e tira férias para esquiar no Masikryong Ski Resort na montanha Taehwa em Wonsan, uma das cidades prósperas da Coréia do Norte. Esta nova elite é conhecida como donju, que significa algo como “mestres do dinheiro”, e são eles a arma secreta de Kim Jong-un para trazer desenvolvimento ao país e possibilitar uma abertura comercial no futuro.

Por óbvio as guias não quiseram comentar sobre eles, até porque ia totalmente contra a narrativa de igualdade que elas, como funcionárias do governo, tentavam defender a todo instante. Entre uma tergiversada e outra, elas deixaram a entender que esta prosperidade nada mais era que a vida de um norte-coreano comum, embora a realidade estivesse à nossa frente o tempo todo contradizendo isso. O fato é que elas mesmas tinham relações bem próximas com os donju, pois usavam roupas de marca que a irmã de uma delas trazia da China quando viajava para lá, além de terem um emprego e um status social invejável. 

Embora sendo assunto com mais frequência nos últimos anos, os donju não são uma novidade na Coreia do Norte, eles começaram a surgir do meio para o final dos anos 90, num período extremamente conturbado para história da Coréia do Norte. Em 1991, com a queda da URSS, os norte-coreanos foram abandonados pelo seu principal padrinho e quem sustentava boa parte de sua economia. Entre 1990 e 1994, o comércio entre a Coréia do Norte e a Rússia caiu de US $ 2,56 bilhões para US $ 140 milhões. Soma-se a isto ainda um período de grandes inundações seguidas de grandes secas que devastaram a já precária produção agrícola do país. Como miséria pouca é bobagem, em 1994 o Líder Supremo, Eterno Presidente e Fundador da Coreia do Norte, Kim il-sung morreu, deixando para o seu filho Kim Jong-il a responsabilidade de assumir o governo, enfrentar as oposições políticas internas e dar um rumo para o país. Este período ficou conhecido como a Marcha Árdua.

Crianças norte-coreanas durante a Grande Fome (Marcha Árdua) Imagem: borgenproject.org

 

Jangmadang

Enquanto Kim Jong-il focava no plano Songun (militares primeiro), no aumento do seu poderio militar e em costurar uma parceria com um novo padrinho, a China, o povo morria de fome a espera de uma solução do governo. As estimativas são das mais diversas, mas é esperado que mais de 1 milhão de pessoas tenha morrido de fome neste período. Por conta do desespero, algumas pessoas resolveram se arriscar e produzir alimentos e/ou utilizar seus contatos na China e na Rússia para conseguir itens contrabandeados e vender no mercado negro em ruas escuras e becos lamacentos. Surgiam os jangmadang, o mercado informal que iria, e vai, mudar a história da Coreia do Norte.

Jangmadang – Comércio Ilegal durante a Marcha Árdua. Imagem: telegraph.co.uk

 

Kim Jong-il sabia da existência dos jangmadang mas dada as suas outras prioridades, e entendendo que estes mercados estavam de alguma maneira ajudando a levar comida e sustento para as pessoas (obrigação esta que deveria ser totalmente do estado), ele resolveu fazer vista grossa delegando aos partidos locais a regularização da atividade, cobrando aluguel de barracas, regulando preços e determinando quais produtos poderiam ou não ser vendidos.

As barracas eram geralmente operadas por mulheres casadas e de meia idade. Elas pagavam propinas para os partidos locais, gerando uma economia paralela para os membros do partido, e assim os jangmadang foram operando na “clandestinidade com a cumplicidade do estado” até que em 2009, aproximadamente 10 anos após o término da Marcha Árdua, Kim Jong-il resolveu implementar uma desastrosa reforma monetária e mandou fechar todos os comércios “ilegais” e toda atividade comercial paralela do país. Claro que houve enorme descontentamento do público em geral e principalmente dos altos executivos do governo que lucravam com estes mercados. A solução? Como praxe na Coreia do Norte, elegeram um bode expiatório, um alto funcionário do Partido dos Trabalhadores, e ele foi executado.

Em dezembro de 2011 morre Kim Jong-il e seu filho Kim Jong-un teve de assumir o governo. Como de praxe, houve resistência com outros membros do partido, o que resultou em diversas execuções, incluindo seu próprio tio e seu irmão. Após consolidado seu trono, uma de suas prioridades foi criar um plano para recuperação econômica do país. Ainda em 2012 ele resolveu afrouxar o controle sobre os jangmadang e depois criou um plano que em 5 anos, entre 2016 e 2020, o país iria dar um salto na economia e no poderio nuclear (byungjin). Não à toa, foi justamente neste período que houve um embate de cunho nuclear com o presidente americano Donald Trump que resultou na aproximação de ambos e na realização de acordos que resultariam em importantes avanços comerciais para o país.

Postal que comprei na Coreia do Norte. O texto diz algo como: “Vamos levar completamente a cabo a estratégia de 5 anos do desenvolvimento econômico nacional”. Foto: Arquivo Pessoal

 

Por conta desse afrouxamento, os jangmadang se expandiram em quantidade e diversidade, passando para cerca de 400 mercados em todo o país com uma rede de 600 mil fornecedores para toda sorte de produtos, legais ou ilegais. Além disto, logo os comerciantes descobriram que era muito mais vantagem fazer dinheiro fora e levar para dentro do país do que tentar apenas lucrar com o comércio local. Esta estratégia deu muito certo e logo começaram e enriquecer. Por conta dessa habilidade com dinheiro ficaram conhecidos como “mestres do dinheiro” ou em coreano donju.

Quiosques de lanches e bebidas em Pyongyang. Foto: Arquivo Pessoal

O Esquema

Boa parte da riqueza atual dos donju provém de negócios realizados fora da Coreia do Norte, especialmente com terceirização de mão-de-obra. Muitos conseguiram autorização para montar suas empresas dentro do país e usar mão-de-obra interna, outros conseguiram montar suas empresas fora do país, especialmente na Rússia, levando norte-coreanos para trabalhar lá, outros optaram pela agiotagem, mas seja como for, todos eles têm algo em comum: precisam dar gordas propinas para o estado para operarem.

Como já citei neste outro artigo, todos os norte-coreanos homens são obrigados a trabalhar após os 17 anos de idade. No entanto, eles podem se ausentar por algum período do trabalho desde que paguem uma “taxa” para isto. Pelo menos 58% das empresas não estatais da Coreia do Norte empregam estas pessoas, e cerca de 23% dos oficiais do governo estão envolvidos com alguma atividade empresarial. Desta maneira, o dono da empresa precisa –  além de ter um forte lobby para conseguir uma autorização oficial do governo para operar – desembolsar uma boa grana para um oficial do governo que tenha cargo de gerente. Este oficial será encarregado de recrutar as pessoas para trabalharem nesta empresa e irá ganhar também dos trabalhadores cobrando uma “taxa” porque, afinal, eles deveriam estar trabalhando para o estado. 

Comércio ambulante nas estações de trem da Coreia do Norte. Foto: Arquivo Pessoal

Todo o dinheiro levantado pelas propinas e “taxas” que estes gerentes oficiais do governo recebem é distribuído em uma rede hierárquica até chegar na família Kim, ou seja, todo mundo está ganhando com o trabalho dos donju, inclusive os trabalhadores que recebem na empresa não estatal cerca de 80 vezes o valor que recebem trabalhando para o governo. Entre contrabandos e propinas, os donju estão proporcionando uma revolução na Coreia do Norte, com forte apoio popular e grande poder de influência no governo.

Donju fazendo compras em loja de luxo na Coreia do Norte. Image: “我带你去高丽” / NKnews.org

 

Os donju não fazem parte do Songbun, o sistema de castas políticas que define o futuro de todo cidadão norte-coreano e que explico melhor sobre ele neste artigo. Aliás, de uma certa maneira, os donju estão ajudando a diminuir cada vez mais a importância do Songbun na estrutura social e fazendo com que as pessoas sejam de fato mais iguais em termos de oportunidades, ou seja, por ironia do destino (mas não surpreendente), os capitalistas do donju estão proporcionando oportunidades iguais e rompendo com as classes sociais da socialista Coreia do Norte.

É fato que se a pessoa tiver um baixíssimo Songbun estará morando numa montanha inóspita ou em um campo de concentração e jamais poderá ter as oportunidades de desenvolvimento que os donju estão proporcionando, porém, é inegável que estamos falando de um grande avanço para a criação de uma sociedade mais justa.

O futuro

Ficou evidente quando estive na Coreia do Norte o desejo que eles têm de reunificar a península e formar uma grande nação coreana como abordei neste artigo. No entanto, eles também têm consciência do abismo cultural que os separa dos sul-coreanos, fazendo com que este processo de abertura de fronteira, e quem sabe até mesmo a reunificação, esteja muito longe de acontecer.

Para alguns especialistas, o subestimado Kim Jong-un está trabalhando nesta estratégia há tempos inspirado no que Deng Xiaoping fez em 1979 na China, dando início a um processo lento e seguro de preparação do país para se abrir para a economia mundial. Se for isto mesmo, ponto para o gordinho.

Arco da Reunificação. Monumento pela reunificação da Coreia, em Pyongyang. Foto: Arquivo Pessoal

 

Embora os donju sejam a peça-chave para introduzir os conceitos de livre-mercado e liberdade no país mais fechado e atrasado do mundo, não podemos dizer que eles encaram este fato como uma missão ideológica, longe disto. Na verdade, eles temem que uma eventual abertura de mercado ou até mesmo a reunificação da península coreana seja algo ruim para eles, afinal, eles não são tão “mestres do dinheiro” assim como os norte-coreanos pensam que são, e numa economia globalizada, eles seriam bem possivelmente esmagados por grandes corporações ou seriam apenas pessoas comuns, como qualquer empresário mediano da Coréia do Sul, perdendo seu status e sua riqueza, o que eles não querem de forma alguma, afinal, em terra de cego, quem tem um olho é rei.

 

Acompanhe a série de postagens que estou fazendo sobre a Coreia do Norte com muitas fotos e vídeos exclusivos que eu mesmo registrei. Também disponível no Instagram.

Aqui você encontra uma série de 10 artigos que escrevi sobre a Coreia do Norte e neste outro uma entrevista que dei para a Gazeta do Povo.

Artigo escrito por Leonardo Lopes, formado em História, empresário, viajou para a Coreia do Norte em 2018 e escreveu uma série de 10 artigos sobre este país e sua experiência nesta viagem.

Outras fontes:

https://theconversation.com/the-rise-and-rise-of-north-koreas-money-masters-47708

https://www.dailynk.com/english/north-korea-increasingly-stages-raids-donju-owned-businesses/

https://www.dailynk.com/english/assessing-north-korea-efforts-encourage-private-business/

https://www.nytimes.com/2019/02/14/magazine/north-korea-black-market-economy.html

http://english.hani.co.kr/arti/english_edition/e_northkorea/881066.html

https://www.vice.com/en_ca/article/9kn93v/photos-show-the-privileged-lives-of-north-koreas-new-elite

https://koreajoongangdaily.joins.com/news/article/article.aspx?aid=3054069

https://www.nytimes.com/2017/04/30/world/asia/north-korea-economy-marketplace.html?_r=0

 

Compartilhar:

Comentários

comentarios

Instagram


Instagram